Desperdício na mira

Desperdício na mira

Tecnologia pode ser uma aliada no combate às perdas de alimentos, tema que incomoda um dos países que mais produz no mundo e que será discutido por meio de um grupo de trabalho criado pelo Mapa

Por
Camila Pessoa e Giullia Piaia (sob supervisão de Danton Júnior)

Ao mesmo tempo em que é um grande produtor de alimentos, o Brasil ainda tem parte de sua população em situação de insegurança alimentar. Uma das formas de atenuar essa disparidade é impedir que uma grande quantidade de comida acabe indo parar na lata do lixo. Em setembro deste ano, o Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa) criou o Grupo de Trabalho de Enfrentamento a Perdas e Desperdício de Alimentos. O objetivo é organizar e promover políticas públicas para combater o desperdício de alimentos no país e contribuir com as estratégias globais da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO). 

O trabalho será desenvolvido com base em cinco eixos: pesquisa, tecnologia e estatísticas; comunicação para sensibilização de produtores, distribuidores, comerciantes e consumidores; avaliação da regulação para eventuais ajustes normativos; portfólio de políticas nacionais; integração brasileira e colaboração internacional. No futuro, o GT pretende promover discussões públicas sobre o tema e elaborar um plano de enfrentamento que colabore com as metas globais.

Ainda não há dados robustos para definir com exatidão qual o desperdício atual do país, como afirma o pesquisador da Embrapa Alimentos e Territórios Gustavo Porpino, um dos participantes do grupo de trabalho. Por outro lado, alguns setores fazem levantamentos que trazem uma noção de perdas, como é o caso da Associação Brasileira de Supermercados (Abras). Segundo a organização, em 2021 os supermercados brasileiros desperdiçaram o equivalente a R$ 3,6 bilhões em comida. “Os alimentos mais desperdiçados nos supermercados brasileiros são frutas e hortaliças”, destaca Porpino. As perdas no transporte e armazenamento da produção, considerando-se apenas soja e milho, foram mensuradas em R$ 2 bilhões em 2015 pelo Sistema de Informações de Perdas de Pós-Colheita (SIPPOC). 

O grupo de trabalho já iniciou os debates e, até o momento, fez um levantamento de tecnologias disponíveis para auxiliar no combate ao desperdício, como filmes biodegradáveis e irradiação de alimentos. Porpino destaca que há um esforço para dar mais visibilidade a essas tecnologias, a fim de encontrar parceiros na indústria para sua implementação. “Elas já são utilizadas, mas não na escala em que deveriam”, diz. 

Uma das técnicas citadas, que pode ser implementada em grande escala, é um sistema de rastreamento e monitoramento do grau de amadurecimento do fruto. Além disso, as discussões incluem assuntos como a viabilização da captação de dados sobre o desperdício e alternativas para a flexibilização da data de validade dos alimentos, como a adoção de um modelo com duas datas: a de manutenção da qualidade sensorial e a de segurança para consumo. 

Como possíveis soluções, Porpino também cita a utilização de melhores embalagens, como a substituição de caixas de madeira por caixas de papelão para que os produtos sejam menos danificados; a utilização de inteligência artificial para a gestão de estoque; opções de baixo investimento, como uma melhor organização de frutas e hortaliças e melhor capacitação de funcionários; e investimento em campanhas nacionais para mudar os hábitos do consumidor. “Reduzir o desperdício de comida é uma maneira sustentável de ampliarmos a oferta de alimentos”, resume.

Contribuição da comunidade

Iniciativas surgidas na sociedade já têm colaborado com a redução do desperdício. O Mesa Brasil é um programa do Serviço Social do Comércio (Sesc) que combate a insegurança alimentar enquanto evita a perda de alimentos. O programa recolhe doações de parceiros – como supermercados, padarias e indústrias alimentícias – e leva os alimentos a instituições, de forma rápida e segura. No Rio Grande do Sul, o programa atua em sete municípios: Porto Alegre, Erechim, Ijuí, Lajeado, Rio Grande, Santa Maria e Cachoeira do Sul. 

A coordenadora do Mesa Brasil no Estado, Luciana Basile, explica que uma das campanhas desenvolvidas para aumentar a arrecadação é o Pomar Solidário (foto acima), surgido em 2015, em Cachoeira do Sul. É uma forma de doar a colheita “daquela árvore frutífera que estava carregada e cujos frutos iam acabar caindo e indo para o lixo”, diz a coordenadora. Em 2019, o Pomar Solidário chegou a arrecadar cinco toneladas de alimentos. “O objetivo do pomar é mobilizar as pessoas que têm árvores frutíferas e hortas em casa e que não vão consumir tudo”, afirma Basile (leia mais no fim da página).

Novo aliado no combate ao carrapato

Camila Pessoa*

Sistema Lone Tick, testado pela Embrapa, conseguiu reduzir a infestação no Cerrado sem a utilização de acaricidas e agora será aplicado no Rio Grande do Sul

Método promove vazio sanitário de 84 dias, período em que as larvas do carrapato morrem no solo por falta de animais para parasitarFoto: Sérgio Bender / Divulgação / CP

Animais infestados pelo carrapato-do-boi, além de correr o risco de sofrer com perda de peso, irritabilidade, anemia, infecções na pele e lesões no couro, podem adquirir a tristeza parasitária bovina (TPB), doença transmitida pelo carrapato que leva à morte do animal. Em razão disso, a Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa), unidade Gado de Corte, estima que, no Brasil, o prejuízo causado pelo artrópode pode chegar a 3 bilhões de dólares anuais. 

Para evitar os prejuízos, o método tradicional de controle dos carrapatos é a utilização de acaricidas, especialmente importantes em criações de raças bovinas geneticamente melhoradas para aumentar a produtividade tanto da carne quanto do leite, que são mais sensíveis ao parasita. De acordo com a Embrapa, o carrapato provoca uma perda anual de leite de 95 kg por animal, em especial na raça Holandês. O problema é que os acaricidas, além de levarem à resistência dos carrapatos, podem contaminar o ambiente, os trabalhadores, o leite e a carne, especialmente se utilizados sem o acompanhamento adequado. Para evitar esses problemas, a Embrapa Gado de Corte tem feito experimentos com o sistema Lone Tick (carrapato solitário), que permite o controle do parasita sem o uso de acaricidas. 

O novo sistema tem como base um período de “vazio sanitário”, determinado pela Embrapa a partir de pesquisas. “Esse vazio sanitário de 84 dias mostra que é possível controlar o carrapato deixando a larva, durante esse período, sem contato com o hospedeiro”, explica o pesquisador Renato Andreotti, um dos responsáveis pelo experimento. 

Assim, no sistema Lone Tick, os bovinos ficam com os carrapatos durante 28 dias. “O carrapato é separado do bovino, porque o ciclo na fase parasitária é de 21 dias, então com 28 caem todos os carrapatos”, diz Andreotti. Depois desse período, os bovinos são colocados em outro pasto, onde permanecem, também, por 28 dias. Dessa maneira, alternam entre quatro pastos, completando 84 dias até a volta para a área original, tempo necessário para que as larvas – colocadas quando os carrapatos caem ao chão – morram, sem contato com o hospedeiro. 

“O estudo já comprovou que funciona na região do Cerrado para animais de recria da raça Senepol, onde tivemos apenas uma média de dez carrapatos ao longo do ano nos animais. Neste experimento não tivemos casos de bicheiras e nem de tristeza parasitária bovina”, afirma o pesquisador. 

Nessa ocasião, a Embrapa avaliou, durante um ano, o controle da infestação do carrapato Rhipicephalus microplus. Agora, a instituição está validando o sistema em Canguçu (RS), em 15 vacas de cria de uma produção orgânica, para conhecer o potencial do Lone Tick na região Sul do país, área com características climáticas diferentes da região do Cerrado. O estudo usa as mesmas medidas de área e estratégias da experiência anterior. Os resultados iniciais foram coletados na primeira semana de setembro pela Embrapa, segundo a qual a estratégia se mostrou promissora. Em agosto, a média na contagem de carrapatos era de 93 parasitas por animal. Depois da aplicação do sistema, a primeira contagem apresentou 37 carrapatos por animal. 

Com esses resultados iniciais, Andreotti comenta sobre os próximos passos. “No Rio Grande do Sul, após a validação dos resultados, vamos trabalhar junto com a Emater para montar uma estratégia mais produtiva na região”, explica. Os pesquisadores também pretendem implantar um sistema com animais da raça Brangus, muito utilizada no Brasil central, e trabalhar com associações de criadores para divulgar o sistema e ampliar a utilização entre os produtores. 

“Ao utilizar o sistema Lone Tick você não usa produto químico e deixa de ter as possíveis contaminações no ambiente, no trabalhador e nos produtos de origem animal”, ressalta Andreotti. O pesquisador afirma que o método também pode controlar o desenvolvimento de resistência dos carrapatos aos acaricidas, fazendo com que produtos que já não funcionavam possam ser usados novamente. “Também é importante lembrar que podemos, com essa prática, alcançar novos nichos de mercado, como é o exemplo de produtos orgânicos”, finaliza.

*Estagiária sob supervisão de Danton Júnior

Patrimônio do campo

Giullia Piaia*

Ligados à identidade cultural do meio rural, os potreiros passam por um momento de resgate graças a uma iniciativa premiada recentemente em âmbito nacional

Local de descanso dos animais, o ambiente caracteriza-se por possuir uma alta gama de frutas e reservas de madeira e lenha. Foto: CETAP / Divulgação / CP

Elemento fundamental na constituição das paisagens rurais do Rio Grande do Sul, os potreiros foram, por muito tempo, a principal garantia de renda das famílias, principalmente por meio das atividades de pecuária desenvolvidas no local. O ambiente costuma ser caracterizado por árvores, pasto, arbustos nativos, pequenos riachos, banhados e a presença de animais, geralmente bovinos ou ovinos. 

Nos últimos anos, estes ambientes têm sido objeto de resgate de iniciativas que visam preservar o seu aspecto ambiental e cultural. Desde o início dos anos 2000, o Cetap (Centro de Tecnologias Alternativas Populares), organização que desenvolve atividades na área da agroecologia, leva tecnologias e práticas de complexificação e qualificação desses ecossistemas a famílias e produtores rurais que contem com estes espaços em suas propriedades. O programa de resgate e manutenção de “Potreiros Tradicionais do RS” é coordenado por Alvir Longhi e tem por objetivo maximizar a exploração destes espaços, utilizando estratégias que buscam se alinhar aos componentes dos biossistemas dos potreiros.

Os esforços dos técnicos do programa não são reconhecidos apenas pelos agricultores atendidos. Neste ano, o Cetap ficou entre os dez vencedores do prêmio BNDES de Boas Práticas para Sistemas Agrícolas Tradicionais. “O prêmio é importante para dar visibilidade à importância que esses sistemas tradicionais têm e para incentivar os próprios produtores a continuarem trabalhando neles”, pontua Longhi. O potreiro é o local de descanso e, ao mesmo tempo, de alimentação dos animais, além de possuir uma alta gama de frutas e reservas de madeira e lenha. Estão muito associados ao entorno das casas, áreas de lavoura e de mata nativa. Ao longo do tempo se transformaram em um ambiente importante para a manutenção e a conservação da biodiversidade local, como espécies vegetais e da fauna que habita esses espaços mais abertos. A diversidade de pastagens naturais é também importante para os animais, pois possibilita que tenham uma alimentação variada.

Em São Francisco de Paula, propriedade de Rosane Becker recebe visita de técnicos do Cetap há cerca de dois anos. Foto: Rosane Becker / Arquivo Pessoal / Divulgação

Os potreiros podem ser classificados como “sistema agrossilvipastoril tradicional”, onde os agricultores fizeram, historicamente, diversos manejos, em especial a roçada seletiva das espécies de ocorrência natural, juntamente com os animais ali criados, dando assim um formato característico a esses sistemas. Formato que está ligado à cultura e à biodiversidade local. Segundo o coordenador do programa, o foco se dá no extrativismo sustentável e na valorização e uso das frutas nativas desses sistemas, tanto para consumo próprio quanto para complementação de renda. A equipe de Longhi tem a tarefa de propor e desenvolver arranjos produtivos, incorporando árvores e arbustos de espécies nativas de cada região, promovendo assim a diversidade ecológica e a valorização econômica e social do ambiente, em função dos produtos gerados por estes cultivos.

Cerca de 30 famílias são atendidas pelo Cetap na região dos Campos de Cima da Serra, mais especificamente em Vacaria, Monte Alegre dos Campos, Ipê, São Francisco de Paula e Campestre da Serra. Nessa região os potreiros costumam ter campos nativos mais extensos e são destinados à criação bovina e ovina. Nessas áreas ocorre o extrativismo de pinhão, além de algumas iniciativas de extrativismo de butiá, guabiroba e goiaba serrana, entre outras frutas. Algumas propriedades desenvolvem atividades nos potreiros, como a produção de mel e de lenha, na mesma proporção que a criação de gado, demonstrando a multifuncionalidade a ser explorada na área. Uma das propriedades atendidas pelo projeto é a de Rosane Becker, no distrito de Cazuza Ferreira, em São Francisco de Paula (foto abaixo, à direita). Rosane recebe visitas de um dos técnicos do Cetap há cerca de dois anos.

Durante as visitas, recebe dicas de cuidados com o potreiro, além de um planejamento de plantio e replantio de espécies no ambiente. Em seu potreiro estão presentes árvores de goiaba, guabiroba, guamirim, pinhão e uvaia.

O programa do Cetap tenta valorizar economicamente a área dos potreiros, por isso propõe a venda de produtos extraídos dos ambientes, contribuindo assim como uma renda extra para as famílias. Rosane estima que nos dois anos em que participa do programa, os produtos extraídos já renderam mais de R$ 1.000,00. “A venda é muito importante para a gente. E os técnicos vêm buscar os produtos aqui na fazenda, nós não teríamos como fazer o transporte até a cidade, então eles nos ajudam bastante”, conta Rosane. O Cetap também disponibilizou um freezer para que os produtos colhidos possam ser armazenados. 

*Estagiária sob supervisão de Danton Júnior

Excedente vira doação

Camila Pessoa*

Iniciativa da Ceasa recebe alimentos de agricultores e atacadistas e leva a entidades parceiras, beneficiando até 50 mil pessoas por mês

Programa existe desde 2002 e já foi laureado pela Organização das Nações Unidas (ONU). Foto: CEASA / Divulgação / CP

O esforço para o combate ao desperdício de alimentos tem sido executado também algumas instituições públicas. No Rio Grande do Sul, o programa Prato para Todos, coordenado pelo Banco de Alimentos, da Centrais de Abastecimento do Estado (Ceasa/RS), recebe o excedente dos agricultores atacadistas e de instituições parceiras para selecionar, limpar e separar, a fim de fazer doações para as 162 entidades cadastradas, que incluem instituições como asilos e creches. Segundo a coordenadora do Banco de Alimentos, Rosandrea Vargas, o programa beneficia entre 40 e 50 mil pessoas ao mês.

Para impactar a vida dessas pessoas de forma mais ampla, o Prato para Todos opera com base em três eixos: assistência alimentar, com doação de alimento para entidades e distribuição para a população necessitada no portão da Ceasa; ação educacional, com a utilização de um ônibus-escola onde o Sesc oferece oficinas de combate ao desperdício e aproveitamento de alimentos; e reinserção social, em que voluntários de comunidades terapêuticas parceiras, com tratamento contra drogas ou alcoolismo concluído, auxiliam na arrecadação, seleção e distribuição de alimentos às entidades, recebendo, também, doações de alimentos e sendo avaliados para a possibilidade de reinserção no mercado de trabalho. 

O programa existe desde 2002, tendo sido laureado pela Organização das Nações Unidas (ONU) em 2004, e recebe as instituições para recolhimento de doações às quartas, quintas e sextas-feiras. Durante a pandemia, a equipe responsável pelo Prato para Todos passou a levar alimentos in loco para idosos. Além disso, o programa também recolhe roupas e calçados para doação. 

*Estagiária sob supervisão de Danton Júnior

Correio do Povo
DESDE 1º DE OUTUBRO 1895